terça-feira, 18 de janeiro de 2011

letras


"Entendam, quero dar o meu sangue e vender a alma à escrita. Quero-a minuciosamente trabalhada para que me seja expropriada. Quero-a publicada num manual escolar para que seja desvalorizada e achincalhada por uma criança. Quero-a escarrapachada num jornal, para que seja condenada na praça pública. Que se escreva "a vida são dois dias", e se confunda vulgaridade com genialidade. Quero insinuar o bárbaro, sexualizar o assexual, quero pornografia literária gratuita para as massas.
Através do choque, através da corrosão, quero a palavra amarga. Quero que a tragédia me divirta e que a morte da inocência me cause indiferença. Não sinto um pingo de culpa, uma demora que me atrase as vísceras e me comova. Não se manifestem as lágrimas nem as campanhas de solidariedade. Não me peça o cego esmola, nem tão pouco a violinista de rua, desempregada de orquestra. Que nunca doe dinheiro a campanhas solidárias. Que um dia precise de ajuda ou seja vítima de doença e morra desamparado. Que deus ou o diabo me castigue. Que me neguem as virgens ou profetas de obesidade mórbida. Que me tirem o tecto e desfaleça em palidez numa esquina.
Leio as pessoas, dissonantemente belas e sofridas, e leio quem verdadeiramente sou, um traste prosaico, entulho poético. Atrozmente frio por invejar o dom que não tenho. A escrita não faz de mim boa pessoa. Faz de mim apenas outro homem, sem boa vontade." Nelson P. Ferreira

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